A questão da identidade de gênero tem sido destaque em debates, principalmente depois de uma personagem da novela “A Força do Querer”, da Rede Globo, ter revelado ser transgênero. De maneira muito delicada e didática, a autora Glória Perez tem abordado diferentes ângulos para a compreensão desse tema: a dificuldade de diagnóstico, o preconceito e a violência a que são submetidos os transgêneros, o sofrimento psíquico, o tratamento para adequação ao gênero que não foi designado no início da vida, a rejeição pela família.
A transexualidade, porém, não é um fenômeno recente. No Século XVII o Abade Choisy já descreveu sua vida dupla como homem e como mulher. A transexualidade já era um fenômeno reconhecido desde o final do século XIX. No entanto, foi apenas a partir de 1950, com o avanço da Medicina, que houve possibilidade técnica, através de tratamentos hormonais e cirurgias, de se viabilizar a demanda de “adequação” dos transexuais.
A transexualidade deve ser entendida como uma questão de identidade e não uma perversão sexual, nem uma doença debilitante ou contagiosa (DE JESUS, 2009). Não está relacionada à orientação sexual, como geralmente se pensa, não é uma escolha nem um capricho.
Existe uma confusão quanto à diferença entre identidade de gênero e orientação sexual.
A Identidade de Gênero refere-se ao gênero com o qual o indivíduo se identifica, como homem ou mulher ou nenhum dos dois. Em relação à identidade de gênero, o indivíduo pode ser:
a) Cisgênero: Identifica-se com o gênero com o qual nasceu, ou seja, há conformidade entre o gênero designado/atribuído e o percebido/sentido pela própria pessoa;
b) Transexual ou transgênero: Ao contrário do anterior, identifica-se com o gênero oposto ao dado no nascimento, ou seja, o gênero designado/atribuído ao nascimento não está de acordo com o percebido/sentido pela pessoa. Essas pessoas não conseguem aceitar características anatômico-sexuais de seu corpo, pois as identificam com o gênero oposto (ou diferente) ao que sentem ser o seu. E/ou não conseguem viver socialmente de acordo com o gênero designado.
Vale lembrar que Mulher transexual é toda pessoa que reivindica o reconhecimento social e legal como mulher. Homem transexual é toda pessoa que reivindica o reconhecimento social e legal como homem.
A Orientação Sexual refere-se ao gênero pelo qual a pessoa sente alguma forma de atração. Em relação à orientação sexual, o indivíduo pode ser denominado, de acordo com uma convenção social:
a) Heterossexual: atraído pelo gênero oposto;
b) Homossexual: atraído pelo mesmo gênero;
c) Bissexual: atraído pelos dois gêneros;
d) Assexual: não sente atração pelo mesmo gênero nem pelo oposto.
Segundo Virupaksha, H. G., Muralidhar, D., & Ramakrishna, J. (2016), a questão da identidade de gênero é tão séria que observamos importante impacto nas estatísticas de saúde mental. A taxa de tentativa de suicídio entre pessoas transgênero varia de 32% a 50% entre os países, consideravelmente altas em comparação com a população em geral. Outros importantes problemas são: discriminação, bullying, violência, rejeição pela família, amigos e comunidade e assédio. A discriminação e os maus tratos no sistema de saúde são os principais fatores de risco que influenciam o comportamento suicida entre as pessoas transgêneros.
Luis Pereira Justo, psiquiatra no Ambulatório de Saúde Integral de Travestis e Transexuais do Hospital das Clínicas, em São Paulo, defende a importância de saber quando existe a disforia de gênero, caracterizada por um sentimento de insatisfação, ansiedade e desconforto com o corpo masculino ou feminino, com o qual nasceu. Essa disforia gera intenso sofrimento psíquico que pode levar ao abandono da escola, do trabalho e ao auto isolamento, chegando em muitos casos a uma depressão. Segundo ele, apenas a cirurgia de mudança de sexo não resolve todos os problemas ligados à transexualidade, mas pode consistir numa tentativa de adequação para o sofrimento que a incongruência de identidade de gênero implica. É fundamental compreender que o que determina a identidade de gênero transexual é a forma como as pessoas se identificam, e não um procedimento cirúrgico.
Em 1997, o Conselho Federal de Medicina, através da Resolução nº 1.482, autorizou a realização de cirurgias de transgenitalização em pacientes transexuais no país, alegando seu caráter terapêutico. Esta resolução parte do princípio de que o paciente transexual é portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência à automutilação ou autoextermínio. A intervenção cirúrgica passou a ser legítima no Brasil, desde que o paciente apresente os critérios necessários para a realização da mesma e o tratamento siga um programa rígido, que inclui a avaliação de equipe multidisciplinar e acompanhamento psiquiátrico por no mínimo dois anos, para a confirmação do diagnóstico de transexualismo.
O aumento da demanda de tratamento médico cirúrgico por parte dos transexuais impulsionou a criação de programas assistenciais que hoje atendem a um grande número de pacientes, com vasta experiência na área de assistência e pesquisa, como o Hospital das Clínicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Em geral, o processo assistencial compreende as seguintes etapas: avaliação e acompanhamento psiquiátrico periódico para confirmação do diagnóstico; psicoterapia individual e de grupo; hormonioterapia, com o objetivo de induzir o aparecimento de caracteres sexuais secundários compatíveis com a identificação psicossexual do paciente; avaliação genética; tratamento cirúrgico. Além disso, vários desses serviços já estabelecem contato com uma assessoria jurídica, para indicação de pacientes operados no processo de mudança de nome. Vale destacar que, na transexualidade, a importância do acesso aos serviços de saúde consiste não apenas no cuidado do processo de saúde-doença, mas fundamentalmente numa estratégia de construção de si (ARÁN, MURTA & LIONÇO, 2009).
Uma possível explicação científica para a transexualidade foi levantada através de pesquisas pelo Dr. Alexandre Saadeh, psiquiatra do HC-USP. Segundo ele, a genitália se forma por volta da décima semana no feto . Nesse período, o cérebro ainda está em desenvolvimento, mas por volta da vigésima semana, se define a área cerebral que dará a identidade de gênero ao bebê. Ou seja, pode haver genitália masculina com cérebro masculino e genitália feminina com cérebro feminino ou vice-versa. Ele explica que, nestes casos, nasce uma criança com questionamentos em relação a sua identidade de gênero. Isso vai se manifestar logo por volta de 2 a 4 anos de idade, que é quando a criança já tem uma maturidade neurológica para dizer se é menina ou menino.
O que ocorre é um cérebro feminino numa genitália masculina ou o contrário. O cérebro e a genitália desenvolvem-se em sentidos opostos por influência dos hormônios e outras substâncias que podem ter circulado pela placenta e cordão umbilical.
Há um movimento por parte dos ativistas no sentido de despatologização do transexualismo, tendo em vista a adoção de uma concepção de saúde que reconheça a pluralidade de identidades de gênero como uma manifestação natural dos seres humanos e que atenda as demandas das pessoas trans sem a necessidade de condicionar esse atendimento a um diagnóstico psiquiátrico e/ou psicológico.
A violência e o preconceito dentro e fora do Brasil só contribuem para aumentar o grau do sofrimento dos transexuais. Dados do Grupo Gay da Bahia mostram que 42% das vítimas LGBTs mortas no Brasil em 2016 eram transexuais. No mês passado, o presidente Donald Trump anunciou no Twitter que pretende proibir pessoas transgênero de servir nas forças armadas. Ainda, um dos primeiros atos de sua administração foi revogar a decisão de Obama de permitir que pessoas transgêneros utilizem banheiros de sua preferência em escolas públicas.
Alguns transgêneros têm procurado a ajuda de psicólogos, como fez a personagem Ivana, da novela global. Nesse sentido, é fundamental ajudá-los, com atitude empática e respeito, a compreender que as pessoas não podem escolher livremente o que são quanto à sua orientação sexual e nem o que sentem ser em relação à sua identidade de gênero, mas que podem escolher manifestar ou não o que sentem e viver livremente como desejam. Acolher e orientar, além de apoiar na comunicação aos familiares e no processo de adequação ao gênero que não foi designado no nascimento é o papel do psicólogo nessas situações.
É papel de todos nós combater transfobia, a homofobia e o estigma na escola, nos órgãos de assistência à saúde e em toda a sociedade e estimular a tolerância. Aqueles que encontram dificuldades nessa área devem procurar ajuda psicológica especializada.
Referências Bibliográficas
- ARÁN, Márcia; MURTA, Daniela; LIONÇO, Tatiana. Transsexuality and public health in Brazil. Ciencia & saude coletiva, v. 14, n. 4, p. 1141-1149, 2009.
- DE JESUS, J. G. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos,2012
- JUSTO LP. Envelhecer em outro corpo. In: Nós e o outro: envelhecimento, reflexões, práticas e pesquisa. São Paulo, Instituto de Saúde, p. 139-158, 2011
- http://diariodebiologia.com/2017/07/psiquiatra-explica-como-os-transgeneros-nascem-com-o-cerebro-incompativel-com-a-genitalia-leitura-imperdivel/
- VIRUSPAKSHA, H. G., MURALIDHAR, D., & RAMAKRISHNA, J. (2016). Suicide and Suicidal Behavior among Transgender Persons. Indian Journal of Psychological Medicine, 38(6), 505–509. http://doi.org/10.4103/0253-7176.194908