Os efeitos do trauma e da negligência no desenvolvimento cerebral e a proteção das ferramentas de Disciplina Positiva. Maria Alice Fontes

Um dos mais relevantes estudos sobre os efeitos da negligência na infância foi realizado com adolescentes que passaram por orfanatos da Romênia durante a infância. Uma nova análise mostra que esses adolescentes que apresentam uma variedade de problemas comportamentais e cognitivos, têm menos substância branca em seus cérebros do que um grupo de comparação do mesmo local, mas que não vivenciaram negligência.

As regiões do cérebro afetadas incluem áreas responsáveis pelo processamento da atenção, cognição geral e processamento de emoções. O trabalho sugere que a privação sensorial no início da vida pode ter impactos anatômicos graves no cérebro e pode ajudar a explicar os efeitos negativos em longo prazo sobre o comportamento.

O trabalho é baseado em exames de ressonância magnética e outras medidas feitas na Romênia por pesquisadores do Bucharest Early Intervention Project (BEIP). O grupo, liderado pelo neurologista Charles Nelson, da Harvard Medical School, teve a ideia de estudar os efeitos do colapso do regime de Nicolae Ceauce?cu, na Romênia, em 1989, que levou dezenas de milhares de crianças a orfanatos administrados pelo Estado. Nelson conta que os cuidadores dos orfanatos trabalhavam em turnos curtos e as crianças eram submetidas a até 17 cuidadores diferentes em uma semana. Os bebês raramente recebiam interações individuais e viviam em um estado de falta de estimulação.

Mas há boas notícias! Um pequeno grupo de crianças que foram retiradas de orfanatos e se mudaram para lares adotivos aos 2 anos de idade pareceu se recuperar, pelo menos na estrutura cerebral. Isso reforça a ideia que as ferramentas da Disciplina Positiva com crianças pequenas, que incluem a validação das emoções, o encorajamento e o aprendizado da regulação emocional pode estimular os cérebros das crianças pequenas de forma muito poderosa.

“Este é um estudo interessante e importante”, diz o pesquisador da Harvard Medical School, Martin Teicher, que dirige o programa de pesquisa de psiquiatria no McLean Hospital em Belmont em Massachusetts. A questão crucial se as crianças podem se recuperar dos contratempos da adversidade inicial não havia sido respondida antes, acrescenta.

O que é considerado trauma para uma criança pequena?

O trauma na primeira infância está relacionado às experiências traumáticas que ocorrem entre 0 a 6 anos de idade. Um crescente corpo de pesquisa demonstra que crianças pequenas podem ser profundamente afetadas por eventos que ameacem a sua segurança ou a de seus pais e cuidadores. Esses traumas podem ser o resultado de negligência, violência intencional, como abuso físico ou sexual, incluindo a violência doméstica. Além disso, pode ser decorrente de desastres naturais, acidentes ou guerra. Crianças pequenas também podem vivenciar estresse pós-traumático em resposta a procedimentos médicos dolorosos ou a perda súbita de um dos genitores ou cuidadores.

Quais são os efeitos dos eventos traumáticos na vida da criança?

Os eventos traumáticos que ameaçam a segurança das crianças pequenas têm um profundo impacto sensorial. Sua integridade emocional pode ser profundamente abalada por estímulos visuais assustadores, ruídos altos, movimentos violentos e sensações associadas a um evento imprevisível e assustador.

As imagens assustadoras tendem a se repetir na forma de pesadelos e medos que revivem o acontecimento. Na falta de uma compreensão precisa da relação entre causa e efeito, as crianças pequenas acreditam que seus pensamentos, desejos e medos têm o poder de se tornar reais e fazer as coisas acontecerem novamente.

As crianças pequenas que sofreram trauma estão particularmente em risco porque seus cérebros que estão em rápido desenvolvimento são muito vulneráveis. O trauma na primeira infância tem sido associado ao tamanho reduzido do córtex cerebral, responsável por todas as funções complexas, incluindo memória, atenção, percepção, pensamento, linguagem e consciência. Essas mudanças podem afetar o QI e a capacidade de regular as emoções, e a criança pode desencadear mais comportamentos indevidos, tendo dificuldade para se desenvolver de forma segura e de todo o seu potencial.

Sem o apoio de um pai ou cuidador de confiança para ajudá-los a regular suas fortes emoções, as crianças podem experimentar estresse intenso, com pequena capacidade de comunicar efetivamente o que pensam e sentem. Eles frequentemente desenvolvem sintomas que os pais e cuidadores não entendem e podem exibir comportamentos indevidos que os adultos não sabem como responder apropriadamente.

Sintomas e Comportamentos

As crianças pequenas podem desenvolver sintomas comportamentais e fisiológicos associados ao trauma, pois não conseguem expressar em palavras seus medos, angustias e impotência. Podem apresentar dificuldade de enfrentar novas situações, serem facilmente assustadas, difíceis de consolar, agressivas e impulsivas. Elas também podem ter dificuldade para dormir, perder habilidades adquiridas recentemente e mostrar regressão no funcionamento fisiológico e comportamental.

Crianças de 0 a 2 anos expostas a trauma podem:

  • Demonstrar poucas habilidades verbais
  • Apresentar problemas de memória
  • Gritar ou chorar excessivamente
  • Ter pouco apetite, baixo peso ou problemas digestivos
  • Crianças entre 3 e 6 anos de idade expostas a trauma podem:
  • Ter dificuldade em focar ou aprender na escola
  • Desenvolver deficiências no aprendizado
  • Apresentar problemas no desenvolvimento das habilidades sociais
  • Imitar o evento abusivo ou traumático
  • Ser verbalmente abusivas
  • Ser incapazes de confiar nos outros ou de fazer amigos
  • Acreditar que elas são as culpadas pelo evento traumático
  • Ter pouca autoconfiança
  • Ter dores de estômago ou dores de cabeça

Quais são os fatores de proteção para aprimorar a resiliência?

Os efeitos das experiências traumáticas em crianças pequenas são preocupantes, mas nem todas as crianças são afetadas da mesma maneira, nem no mesmo grau. Crianças e famílias que possuem suas próprias possibilidades de enfrentamento, de acordo com seus recursos psicológicos, sistema de suporte e capacidade interna de resiliência. A Disciplina Positiva pode ajudar as crianças traumatizadas a recobrar suas conexões cerebrais através da estimulação da linguagem das emoções, da pausa positiva e do encorajamento das capacidades internas, desde que sejam usadas de maneira genuína, consistente e previsível.

Embora o trauma na infância possa ter efeitos graves e duradouros, há esperança. Com apoio e adultos atenciosos, as crianças podem e se recuperar de acordo com as seguintes dicas:

Identifique os gatilhos do trauma. Fique atento ao que você está fazendo ou dizendo em sua casa, que pode desencadear lembranças traumáticas. É importante evitar padrões de comportamento e reações que reativam a situação traumática. Preste atenção se o seu tom de voz e expressões faciais podem ser os gatilhos.

O que deixa seu filho ansioso que resulta em uma birra ou explosão? Ajude seu filho a evitar respostas exacerbadas que desencadeiam memórias traumáticas.

Esteja física e emocionalmente disponível. Algumas crianças traumatizadas agem de maneiras a promover a distância dos adultos. Ofereça atenção, conforto e encorajamento, passando tempo junto com afeto e amor.

Reserve tempo para ficar no mesmo nível dos olhos dos seus filhos, ouça primeiro e fale por último, valide os sentimentos, sem tentar resgatar ou consertar. Seja solidário, permita escolhas.

Seja paciente e dê o modelo de equilíbrio. Pergunte, não mande ou reaja.

Quando seu filho está chateado, faça o que puder para manter a calma: abaixe a voz, reconheça os sentimentos, seja reconfortante e honesto.

Evite qualquer tipo de punição e recompensa, foque em soluções.

Estabeleça limites razoáveis ??e consistentes, com expectativas plausíveis, usando poucos elogios e muitos encorajamentos para comportamentos desejáveis.

Nunca leve os comportamentos de forma pessoal. Permita que a criança fale sobre seus sentimentos sem julgamento.

Não evite temas difíceis ou conversas desconfortáveis. Mas não force as crianças a falar antes que elas estejam prontas.

Corrija qualquer desinformação sobre o evento traumático, e asseguro-os de que o que aconteceu não foi culpa deles.

Ajude seu filho a aprender a relaxar e incentive praticar respiração lenta, ouvir música tranquilizadora ou dizer coisas positivas.

Seja consistente e previsível. Desenvolva uma rotina regular para as refeições, para o tempo de brincar e para a hora de dormir. Previsibilidade é chave para uma criança mais estável.

Prepare a criança antecipadamente para mudanças ou novas experiências.

Como a Disciplina Positiva pode ajudar?

A Disciplina Positiva oferece uma série de ferramentas que podem ser úteis para as crianças que passaram por situações traumáticas. A relação nunca deve ser humilhante, gerar culpa ou vergonha.

Preste atenção para os “não”: não puna, não seja permissível, não ofereça recompensas, não resgate ou conserte, não isole a criança, não retire privilégios como punição.

Foque nos “sim” e aja sempre de forma positiva: 1) Seja gentil e firme ao mesmo tempo; 2) Ajude a criança a se sentir aceita e importante; 3) Entenda que os resultados virão em longo prazo; 4) Ensine habilidades sociais e de vida; 5) Incentive a criança a sentir o quanto é capaz e a usar seu potencial de forma construtiva.

Com a Disciplina Positiva podemos prevenir e tratar crianças que passaram por situações traumáticas a reconectarem seus cérebros e se desenvolverem de forma mais saudável.

Bibliografia:

Glaser D. The effects of child maltreatment on the developing brain. Med Leg J. 2014 Sep;82(3):97-111.
Teicher MH. Childhood trauma and the enduring consequences of forcibly separating children from parents at the United States border. BMC Med. 2018 Aug 22;16(1):146.
Disciplina positiva: O guia clássico para pais e professores que desejam ajudar as crianças a desenvolver autodisciplina, responsabilidade, cooperação e habilidades para resolver problemas. Editora Manole (2015).