Desenvolver a autonomia das crianças e dos adolescentes é fundamental para o futuro deles. No entanto, nem sempre as famílias conseguem perceber o potencial benéfico das pequenas atitudes no cotidiano.
A chegada de uma criança na vida da família é um momento repleto de novas experiências e, também, de dúvidas. Os adultos, em geral, passam por diferentes desafios que os levam a questionar sobre a melhor maneira de educar. O processo de formação de uma criança autônoma, por exemplo, é um dos fatores que mais causa insegurança nos pais.
Um estudo feito pela Universidade de Montreal, no Canadá, afirma que é muito importante incentivar a autonomia desde cedo, uma vez que essa habilidade colabora nas funções executivas, um dos pilares da auto regulação e do desenvolvimento cognitivo. Essas funções englobam a memória de trabalho, raciocínio, capacidade de resolução de problemas e de regulação das emoções, além da flexibilidade e da capacidade de planejamento e execução de atividades.
No entanto, muitas vezes os pais possuem um instinto protetor bastante aflorado, o que acaba ofuscando algumas oportunidades que o filho teria para se tornar um adulto capaz e independente. Da mesma forma que o cuidado e proteção são necessários e indispensáveis para a segurança, pais superprotetores podem provocar atrasos no desenvolvimento e na autonomia dos pequenos.
Falta de independência e a crise de saúde mental nas crianças
Em um artigo de setembro de 2023 do Journal of Pediatrics, Peter Gray, professor de psicologia e neurociência do Boston College, argumenta que “uma das principais causas do aumento dos transtornos mentais é a diminuição das oportunidades para crianças e adolescentes brincarem e se envolverem em outras atividades independentes da supervisão e controle direto dos adultos”.
Segundo Gray e seus colegas, o psicólogo David Bjorklund, da Florida Atlantic University, e o antropólogo David Lancy, da Utah State University, as atividades independentes promovem bem-estar tanto de forma direta, como fonte de satisfação imediata para a criança, quanto no longo prazo, ao desenvolver resiliência, “as características mentais que fornecem uma base para lidar de forma eficaz com o estresse da vida”.
As pesquisas foram desenvolvidas principalmente nos Estados Unidos e na Europa, e apesar das diferenças culturais, os autores dizem que esta “é uma crise nacional e internacional, e deve ser tratada como tal”.
O artigo destaca ainda que a mudança começou nos anos 1960. As crianças, antes consideradas competentes, responsáveis e resilientes, com o advento dos eletrônicos, passaram a se acostumar em serem entretidas, e receber cada vez mais supervisão e proteção.
“Ganharam mais autonomia em alguns aspectos, como escolher o que querem vestir ou comer, mas perderam a liberdade para se engajar em atividades que envolvem algum grau de risco e responsabilidade pessoal, longe de adultos”, explicou Peter Gray.
Por que e como estimular a autonomia infantil desde cedo?
Como vimos até aqui, o crescimento saudável e o bom desenvolvimento mental e emocional infantil estão relacionados a como estimular a autonomia das crianças.
E quanto mais cedo você começar, melhor. Estimular a criança a pensar criticamente, tomar as próprias decisões, resolver problemas, enfrentar desafios e conseguir fazer sozinha várias atividades de seu dia a dia são apenas alguns dos benefícios. Erros irão acontecer, mas espera-se que eles sejam usados como oportunidades de aprendizado.
A autonomia da criança precisa ser trabalhada com calma, respeitando os limites de cada idade. Já pensou colocar uma criança de 2 anos para lavar as louças? Cada faixa etária tem o desenvolvimento motor e cognitivo apropriado que deve ser levado em conta, mas precisamos deixar a criança enfrentar frustrações e assumir as consequências de suas decisões, evitando culpabilizá-las caso algo não saia como esperado.
Maneiras de ensinar autonomia e independência para as crianças
A autonomia na educação infantil é um processo que precisa ser feito de forma contínua e gradual, com a supervisão e orientação dos pais, sem trazer sobrecargas para a criança ou esperar que ela consiga fazer sozinha coisas que ainda não consegue. Veja essas sugestões:
1. Aproveite a tendência natural das crianças de serem autônomas
Muitas vezes, para facilitar a vida, pela pressa ou pela simples inércia, os pais restringem a tendência natural dos filhos à independência, porém, o melhor seria encorajar a persistência, validando a coragem de tentar, para o futuro desenvolvimento da autoestima e da autoconfiança.
2. Estabelecer rotinas
Por exemplo, quando a criança aprende que deve lavar as mãos, o rosto e os dentes e colocar o pijama todas as noites antes de dormir, ele pode concluir essa sequência por conta própria.
E o mesmo quando você faz isso todos os dias, quando estão num ambiente diferente, é importante deixar elas colocarem o sapato, o casaco e levar a própria mochila, mesmo que isso te demande um tempo extra.
3. Evite superproteção
Você pode sentir que está fazendo um favor, aliviando um fardo ou tornando a vida da criança mais fácil. Mas, na realidade, você o estaria privando de um aprendizado valioso que ele mais tarde precisará no mundo real.
4. Atribua a eles responsabilidades e projetos
Para promover a independência das crianças, a proatividade é importante. Ou seja, propor, sugerir e incentivá-los a se envolverem nas diversas tarefas domésticas, bem como em projetos pessoais e escolares.
Crianças independentes são admiráveis e seu filho(a) também pode ser. Não tenha medo de deixá-lo participar de atividades que podem gerar essa independência.
Quando as privamos disso, as estamos privando tanto da sensação imediata de felicidade e satisfação quanto da capacidade de desenvolver os traços de caráter, como coragem e o que em psicologia é chamado de locus de controle interno (definido como a tendência de uma pessoa de acreditar que tem controle sobre sua vida e consegue resolver os problemas que aparecerem), que ajudam jovens e até mesmo adultos a enfrentar os desafios da vida.
Conclusão:
Não deveria ser “surpresa” que inibir ou acabar com atividades independentes em crianças levaria a altas taxas de ansiedade, depressão e até mesmo falhas na auto regulação emocional como vemos atualmente.
E uma última sugestão para você mãe ou pai, ou responsáveis, que tendem a ter dificuldades em encontrar o ponto de equilíbrio entre o proteger e o libertar: atenção. Estar atento não às limitações e dificuldades das crianças, mas às suas potencialidades.
Uma criança estimulada, mesmo com algum grau de comprometimento físico ou mental, pode aprender e se tornar independente. Essa independência depende do olhar dos pais e da comunidade em que essa criança está inserida para aquilo que ela “é capaz de fazer”, para que a estimulação tenha maior eficiência e consequentemente construa cidadãos mais autônomos e felizes.
Pioneira nos estudos sobre mindset, a psicóloga Carol S. Dweck fala, em sua obra Mindset: a nova psicologia do sucesso, sobre a importância das opiniões que o indivíduo adota a respeito de si mesmo para o seu relacionamento com o mundo.
Essa base surge ainda na infância e adolescência, em uma época do desenvolvimento em que situações ou afirmações de terceiros podem causar marcas profundas, que perduram por toda a vida.
Neste sentido, Carol Dweck nos convida a dividir as pessoas em duas perspectivas, em dois tipos de mindset.
O primeiro tipo, o mindset fixo, define aqueles que acreditam que suas qualidades são imutáveis, ou seja, suas habilidades e talentos natos são os fatores mais importantes, que vão determinar seu sucesso ou fracasso.
Por outro lado, há o mindset de crescimento, que indica uma maleabilidade maior das características, por meio da crença de que as capacidades inatas são apenas potencialidades que podem ser desenvolvidas através do esforço.
Ninguém nasce com um tipo de mindset imutável, que vai durar para o resto da vida, muito menos estamos fadados a este ou aquele futuro por conta de nossas habilidades e capacidades.
É claro que todos nós temos nossas aptidões, mas elas realmente são apenas potencialidades que podem ser desenvolvidas e não representam um destino escrito em pedra. Assim sendo, crianças que são encorajadas e estimuladas desenvolvem o mindset de crescimento achando que elas sempre serão capazes e conseguem vencer os desafios da vida.
Essa é uma habilidade cada vez mais determinante para o futuro. Aprendemos com a vida que permitir que os filhos enfrentem os obstáculos é parte do amadurecimento. É como soltar a mão da bicicleta enquanto eles aprendem a pedalar, sabendo que estarão mais fortes e preparados para o mundo lá fora.
Colaboração: Mônica Merlini
Fontes:
DWECK. Carol S. (Autora), S. Duarte (Tradutor). Mindset: A nova psicologia do sucesso, 2017.
LEVINE, Alexandra; PHILIPS, Laura. How to Build Independence in Preschoolers. Child Mind Institute. Disponível em: <https://childmind.org/article/how-to-build-independence-in-preschoolers/>. Acesso em: 26 nov. 2023.
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cl59ydl0415o
https://www.jpeds.com/article/S0022-3476(23)00111-7/fulltext