Perceber como se constrói o aprendizado a partir de um olhar neurobiológico e compreender o porquê de muitas pessoas inteligentes apresentarem dificuldades na leitura, são indagações que permearam os estudos e geram questionamentos. Com os avanços das pesquisas em saúde e educação, diversas novas nomenclaturas e definições foram dadas às dificuldades apresentadas no processo de ensino e aprendizagem.
Um número considerável de crianças tem sido apontado por apresentar dificuldade e/ou distúrbio de aprendizagem, principalmente na leitura e escrita. Cabe destacar que, segundo Neves e Batigália (2011), distúrbio de aprendizagem consiste no comprometimento específico de leitura, de escrita ou do raciocínio matemático em decorrência de alterações na parte central do sistema nervoso, o que ocasiona prejuízos de desempenho na decodificação e/ou na compreensão da linguagem escrita. Dificuldade de aprendizagem, por sua vez, decorre de fatores sociais, econômicos, culturais, educacionais e/ou familiares, tendo um caráter transitório, o que permite sua plena superação por meio de intervenção psicopedagógica, pedagógica, fonoaudiológica ou psicológica.
O que é a dislexia?
O termo dislexia foi usado pela primeira vez por Rudolf Berlin, um oftalmologista da Alemanha. Ele empregou o termo para se referir a um jovem que tinha dificuldade de leitura e escrita ao mesmo tempo em que apresentava habilidades intelectuais normais. Acreditava-se, naquela época, que o problema seria de visão. Em 1925, Samuel T. Orton, neurologista e um dos primeiros pesquisadores a estudar a dislexia, observou que a dificuldade de leitura e escrita não estava correlacionada com a visão. Ele acreditava que essa condição era causada por uma falha da lateralização do cérebro, ou seja uma dificuldade de organização entre os hemisférios cerebrais para relacionar palavras visuais com suas formas faladas. (DEHAENE, 2012).
Atualmente, entende-se que a dislexia é um transtorno de linguagem caracterizada como uma subativação de caminhos neurais na parte posterior do cérebro. Seus estudos mostram que o aprendizado da leitura depende das habilidades de ouvir e entender a fala, enxergar e perceber os símbolos escritos. A dislexia apresenta-se como uma dificuldade desproporcional de aprendizagem da leitura, que não pode ser explicada nem por um atraso mental, nem por um déficit sensorial, nem por um ambiente social ou familiar desfavorecido. Uma consequência importante desta definição é que nem todos os maus leitores são disléxicos. Fatores como, más condições de educação ou simplesmente a complexidade das regras de ortografia podem explicar porque muitas crianças experimentam dificuldades para aprender a ler, segundo Dehaene (2012).
Quais são os primeiros sintomas da dislexia?
O primeiro indício da dislexia pode ser um atraso na fala. É importante uma atenção especial com as primeiras palavras, que de acordo com Rotta, Ohlweiler e Riesgo (2006), surgem por volta de 1 ano e as primeiras frases por volta de 1 ano e 6 meses a 2 anos. Sugere-se que as crianças propensas à dislexia, talvez não pronunciaram as primeiras palavras antes de 1 ano e 3 meses e as frases antes dos 2 anos.
Também surge por volta dos 5 ou 6 anos, a dificuldade para concluir a aquisição de todos os fonemas. Outro marco preponderante é que as crianças disléxicas apresentam grande insensibilidade para as rimas. Este também é um sutil indicador desse distúrbio.
Os sintomas apresentados no distúrbio variam de acordo com a gravidade das dificuldades da criança, evidenciando-se especialmente na fase da alfabetização. Entre os aspectos mais comuns estão a limitação para ler, escrever, soletrar, compreender texto, identificar fonemas, associar as letras aos fonemas correspondentes, reconhecer rimas e aliterações, memorizar a tabuada, reconhecer símbolos e conceitos matemáticos. Observam-se ainda dificuldades acentuadas na memorização das regras ortográficas, troca, inversão, omissão ou acréscimo de letras e sílabas, problemas na organização temporal, espacial e na coordenação motora, demora na aquisição e no desenvolvimento da linguagem oral e dificuldades de expressão e compreensão (OLIVIER, 2007).
Sem dúvida, o quadro mais preocupante da dislexia está na criança em idade escolar. A maior parte das crianças disléxicas é encaminhada para um especialista quando não consegue aprender a ler. Entretanto, é importante lembrar que a dislexia é uma dificuldade que se estende durante a vida inteira, mas os sintomas presentes em um ponto do desenvolvimento, não estão necessariamente evidentes em outro.
Dislexia é genética?
Pesquisadores que estudaram gêmeos idênticos descobriram que onde um gêmeo é disléxico, o outro terá chance de 55 a 70% de apresentar dislexia, Esta pesquisa mostra que há uma forte influência genética, mas que o ambiente e as experiências de vida também desempenham um papel no desenvolvimento dos sintomas. (Harlaar et. al, 2010)
A dislexia provavelmente não é causada por um único gene, mas por uma combinação de características genéticas. Os traços também podem ser expressos de forma diferente entre diferentes pessoas. Por isso, é improvável que haja algum teste genético para diagnosticar a dislexia. Na melhor das hipóteses, o perfil de DNA de uma pessoa pode ajudar a determinar se eles têm um maior risco de desenvolver dislexia. (Shaywitz, 2003)
Naturalmente, se houver história familiar de dislexia, esta é uma informação valiosa para tomar decisões em relação ao tratamento, especialmente se a criança parece estar enfrentando dificuldades ou frustração durante os primeiros anos escolares. (Dehaene, 2012)
Como é o processamento do cérebro durante a leitura?
O cérebro é composto de dois diferentes caminhos para a leitura de palavras, um em uma posição mais temporal e outra mais ventral no cérebro. O caminho temporal localiza-se principalmente na região média do cérebro (tecnicamente a região parietotemporal, logo acima e um pouco atrás da orelha). O caminho inferior ou ventral passa próximo da base do cérebro. O local em que dois lobos cerebrais, o occipital e o temporal se encontram (região chamada de área occipitotemporal), é uma região de intensa atividade, que atua como um núcleo para o qual as informações oriundas de diferentes sistemas sensoriais convergem e onde, por exemplo, todas as informações relevantes sobre uma palavra – sua aparência, seu som e seu significado – são reunidas e armazenadas (SELIKOWITZ, 2001).
O sistema parietotemporal funciona quando se começa a analisar uma palavra, relacionando suas letras aos sons. Já a região occipitotemporal é utilizada por leitores experientes e identifica quase que instantaneamente a palavra inteira.
Com base nesse conceito, podemos perceber que a criança primeiro analisa a palavra, lê corretamente várias vezes, depois forma um modelo neural dessa palavra, como uma assinatura cerebral, que reflete a ortografia, pronuncia o significado da palavra e só assim a armazena no sistema occipitotemporal. Posteriormente, basta que visualize a palavra para que o sistema automaticamente ative e recupere as informações relevantes da escrita. Concomitantemente, enquanto a criança lê, o cérebro funciona em grande velocidade, fazendo associações e buscando as palavras em sua base de dados já armazenada.
Os leitores proficientes ativam sistemas neurais altamente interconectados, que envolvem regiões das áreas posterior e anterior do hemisfério esquerdo. Inicialmente, o circuito inclui regiões responsáveis pelo processamento visual dos grafemas (letras) e suas características gerais (linhas, curvas, formatos) no occipitotemporal, depois a conversão dos grafemas em fonemas (sons correspondentes) e a compreensão das palavras na Área de Wernicke e, em seguida, a articulação das palavras na área motora da fala (Área de Broca), de acordo com Shaywitz (2003).
Como é o funcionamento do cérebro de um disléxico?
As diferenças estruturais entre o cérebro dos leitores proficientes e dos portadores de dislexia concentram-se fundamentalmente no lobo temporal. Além da simetria incomum dos lobos temporais, o cérebro de leitores disléxicos tem alterações na citoarquitetura, sendo observadas também alterações do cerebelo e de suas vias (ROTTA; OHLWEILER; RIESGO, 2006).
Os disléxicos utilizam sistemas de leitura compensatórios, segundo Shaywitz (2003). Além de depender mais da área de Broca, como citado anteriormente, usam outro sistema de leitura localizado no lado direito e na parte anterior do cérebro. Este é um sistema funcional, mas não automático.
Atualmente todos os estudos de imagem cerebral revelam que a dislexia está relacionada com uma subativação na região temporal posterior esquerda e que a região do córtex frontal inferior esquerdo (área de Broca) é frequentemente ativada durante a leitura ou nas atividades fonológicas (DEHAENE, 2012).
Qual a importância da intervenção fonoaudiológica com o disléxico?
A intervenção bem-sucedida com o disléxico acontece a partir de uma avaliação criteriosa e interdisciplinar, tendo a participação de uma equipe composta por fonoaudiólogo, neuropsicólogo e psicopedagogo.
Para Capellini e Zorzi (2009), o trabalho fonoaudiológico tem como principal objetivo priorizar as intervenções, estabelecendo uma sequência de trabalho para as áreas que devem ser enfatizadas, a fim de reduzir o tempo de terapia. Além disso, é importante manter orientação aos pais, professores e profissionais envolvidos.
A aquisição de leitura e escrita sofre influência das capacidades biológicas inatas, da estimulação ambiental e da progressão do desenvolvimento neuropsicomotor, segundo Capellini e Silva (2015). Para que esse processo ocorra de forma organizada, a criança precisa ter um bom desenvolvimento da linguagem oral, pois ambos estão associados.
Assim que a dislexia é diagnosticada, a intervenção fonoaudiológica se dará nas alterações observadas nos processos fonológicos, sintáticos, semânticos e/ou pragmáticos que estiverem prejudicados. Devem ser utilizados procedimentos que possam determinar o nível funcional da leitura, seu potencial, a dimensão da deficiência, a capacidade de leitura, os fatores associados e as estratégias de desenvolvimento para a melhoria do processamento neuropsicológico e para a interação das capacidades perceptivo-linguísticas.
O diagnóstico, para Silva e Crenitte (2014), deve levar em consideração o perfil linguístico, familiar e de gêneros dos dialéticos. Além disso, deve ser avaliada a necessidade da utilização de programas de intervenção com base fonológica que tenham como enfoque a memória de trabalho fonológica e visual e na relação letra-som, para que haja identificação e a possibilidade de intervenção nos primeiros sinais da dislexia.
A estimulação que os disléxicos necessitam deve ser sistemática, estruturada, explicita e intensiva, capaz de abordar os aspectos necessários para desenvolvimento da capacidade de leitura e escrita e as áreas de intermédio (CAPELLINI; ZORZI, 2009).
De forma clínica e educacional, o fonoaudiólogo deve acompanhar as crianças com transtorno fonológico pela possibilidade de este ser o primeiro sinal da dislexia, sendo que os problemas de percepção e produção da fala podem resultar em problemas na aprendizagem da leitura e da escrita. Sendo assim, é necessário que, de acordo com a individualidade de cada caso, sejam adaptados métodos e técnicas, respeitando e tratando o paciente de forma abrangente, dentro do contexto social e familiar.
Quais são as repercussões psicológicas da dislexia?
Os portadores de dislexia em geral apresentam uma grande resistência às atividades de leitura e escrita. Podem desencadear quadros de ansiedade para ir à escola ou para fazer qualquer atividade que envolva leitura e escrita. O sentimento de tristeza pelas falhas no desempenho podem até resultar em sintomas depressivos, devido à sensação de incapacidade, frustração, inferioridade que gera baixa auto estima. Outro quadro psicológico comum de crianças disléxicas é a oposição e o desafio às figuras de autoridade. Todos estes sintomas interferem no tratamento fonoaudiológico e muitas vezes precisam de intervenção psicológica associada para se alcançar o melhor resultado possível.
A avaliação psicológica / psiquiátrica é fundamental nos quadros de dislexia a fim de se fazer um diagnóstico das comorbidades que frequentemente estão presentes, como o Transtorno do Déficit de Atenção (TDAH), quadros de ansiedade e oposição. Em alguns casos, o auxílio medicamentoso pode ser necessário.
Qual a importância da estimulação precoce para o disléxico?
Um bom desenvolvimento nas habilidades de leitura e escrita pode oferecer à criança uma aquisição mais fácil nesta etapa de evolução.
Considerando que para que essa evolução aconteça, há uma necessidade de manipulação consciente dos sons, favorecendo o desenvolvimento da linguagem escrita. Destaca-se nesse percurso a necessidade de estimulação da consciência fonológica, que propõe a possibilidade de reflexão do indivíduo, a fim de atingir habilidades metafonológicas no desenvolvimento da linguagem escrita.
Pode-se concluir que, apesar da dislexia ser um transtorno de linguagem acentuado, ela não impede o desenvolvimento integral e saudável do indivíduo disléxico, mesmo tendo suas particularidades e dificuldades pontuais, nas quais especialistas com uma intervenção criteriosa e adequada, proporcionarão meios e estratégias de adequação para esse processo.
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